3.1.04

NOITE DE SONHO
Finalmente tinha acabado o dia de trabalho. Estava cansado, tinha estado a limpar o bar. Olho para o relógio. São cinco e meia da manhã, e penso como é possível que as pessoas sejam tão porcas e imundas num bar. Apesar da hora tardia, não quero ir para casa. Tenho que fazer qualquer coisa para me distrair. Olho para o fundo do balcão e vejo, através do reflexo no espelho, o piano. Não, não sei tocar piano, mas ao seu lado está o meu instrumento. Ainda é o primeiro, foi-me oferecido pelo meu pais à alguns anos atrás. Foi um sonho tornado realidade. Um saxofone, o instrumento com a mais ela sonoridade do mundo. Atravessei todo o bar, e peguei no instrumento. Um dia de trabalho em cheio e eu nunca pensei acabar o dia a tocar, mas foi o que fiz. Molhei os lábios suavemente, e comecei por libertar os meus mais íntimos pensamentos através do som. Paro. Sinto que falta qualquer coisa. Sei o que é. Pouso o saxofone e vou até ao balcão. Bourbon, era um Bourbon que estava a faltar. Pego na garrafa de e um copo e volto para o saxofone. Sento-me na ponta do banco do piano, e despejo um pouco de bebida no copo e molho os lábios com o precioso liquido. Depois de todo este ritual estou pronto para iniciar a minha viagem. Começo por entoar umas notas e fecho os olhos. Vejo a musica clara e limpa e os meus dedos falam com ela. O êxtase é tal que parece que nunca vai acabar, e quando penso que estou a atingir o pico do monte estou apenas a iniciar a minha escalada. O mundo real desapareceu. Abro os olhos lentamente e vejo o meu reflexo no piano. Volto a fecha-los e continuo a minha viagem. Um dos meus dedos reage, e uma nota sai bastante fora do tom. A viagem pára. Pego novamente no copo e reparo que à uma sombra a meus pés que há minutos atrás ali não estava. Afinal não estou sozinho. Através da silhueta reparo que é uma mulher. Não lhe consigo ver o rosto. Levanto-me e pego na cadeira que estava à minha frente. Viro-me de costas para ela e sento-me. Volto a despejar mais um pouco de bebida no meu copo, e dou um pequeno golo, ouço o gelo cair num copo por trás de mim. Nada digo e nada ouço. Continuo então o meu delírio musical, a minha viagem. Tenho a sensação que esta é melhor que as outras que já tive. Começo a ouvir o piano. Pelo reflexo no saxofone vejo que a mulher sentara-se ao piano. Está vestida de vermelho, o corpo e o cabelo não sei como são, o reflexo está distorcido. A minha curiosidade é enorme, mas a musica faz-me esquecer tudo. Esta mulher toca divinalmente. A nossa conversa resume-se a notas musicais, que se vão entrelaçando, formando uma melodia extremamente sensual. Parece que somos amigos de longa data e trocamos agora confidencias, segredos em forma de musica. Nada fica por dizer . o tempo voa, e quando caio na realidade, a noite tinha acabado e dado lugar a mais um dia. A musica pára e vou à janela para ver o nascer do sol. Quando olho para trás a mulher já lá não se encontra. A porta do bar está aberta e eu corro em direcção a ela. Saio para a rua na ânsia de encontrar esta mulher. Ninguém está na rua. Sem sucesso algum volto para dentro. Não sei como é o seu rosto, nunca ouvi a sua voz nem sei qual será o seu nome. Sei apenas que toca piano e que tinha um vestido vermelho. Arrumo o saxofone e fecho o bar. Esta mulher tocava como ninguém. Caminhando pela rua penso, será que esta noite foi real ou não terá sido um grande sonho.

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